O CALVÁRIO DE DAVID CAPISTRANO: EPÍLOGO


"OS SERES HUMANOS SÃO DEMASIADO IMPORTANTES PARA SEREM TRATADOS COMO SINTOMAS DO PASSADO" (Giles Lytton Strachey - 1880 — 1932 biógrafo, crítico literário e escritor britânico).

Conhecemos pessoalmente David Capistrano no tenebroso ano de 1974, na sucursal do inferno, o famigerado DOI-CODI de São Paulo, sucedâneo da antiga OPERAÇÂO BANDEIRANTES, o pioneiro centro de torturas do governador Abreu Sodré, um dos esteios da ditadura militar. - Nos subterrâneos da esquerda David sempre foi uma legenda. Todos nós já havíamos ouvido falar sobre ele.
Pois bem, querer lembrar o dia ou o mês em que ele chegou até aquele antro de atrocidades é uma missão impossível. Depois de algum tempo alí perdíamos a noção do tempo. Em algumas áreas sabíamos se era dia ou noite. Em outras onde não havia janelas só portas de ferro, a luz acesa permanentemente não nos permitia saber se era dia ou noite e aí não dava para acompanhar a seqüência da semana e nem do mês.
Voltemos ao Davi. É certo que ele chegou acompanhado de uma sra. que nos pareceu ser sua companheira mas, não temos essa certeza. Por alguns instantes tivemos a oportunidade de ver-lhe o rosto. Na época tinha pouco mais de 60 anos. Era um pouco calvo. Tinha estatura mediana. Um pouco gordo lembrando o tipo físico de seus irmãos que anos depois conhecemos em Quixadá. Vestia um terno marron de riscas brancas discretas.
Da sua companheira, não temos a descrição tão completa mas, poderíamos reconhecê-la ainda hoje em fotos daquela época. Era também de meia-estatura e um pouco gorda. Não fixamos pormenores de sua indumentária.

Quando chegaram ao DOI-CODI foram submetidos a interrogatório e, nos primeiros momentos, nos pareceram bastante saudáveis.
Soubemos de seu nome através de um dos carcereiros e a partir de então passamos a nos preocupar com a sua integridade física. David Capistrano, a grande legenda da esquerda brasileira, estava alí perto de nós, correndo riscos!

Naquela época éramos o hóspede solitário da suite X-1, vizinho à X-0 (X-zero) uma cela escura, estreita, onde eram atirados os "mal comportados".

David e sua companheira não ficaram em celas. Ficaram no meio do páteo, ao relento. Quantos dias? Não podemos precisar. Uma semana, talvez. Ficavam de capuz preto para não serem identificados pelos outros "hóspedes" daquele cinco estrelas do terror. Quando eram retirados para o interrogatório, a porta de ferro a prova de som que separava o pátio das salas de tortura era fechada. O rádio tocava músicas em volume muito alto para abafar os gritos dos interrogados.

Depois eles voltavam. Cada vez mais abatidos. Durante sua permanência de pé, nunca vi nenhum dos dois cair de cansaço. Sua resistência física era impressionante. Sua alimentação se resumia a uma ou duas colheres de arroz e uns dois de água. A ração era ministrada pelo carcereiro em intervalos regulares para mantê-los. Isso era o que presenciávamos dia e noite. Aquela semana parecia não ter fim.

Aconteceu o inesperado. Um carcereiro, soldado PM, que atendia pelo codinome de DEZ (isso mesmo) mostrou-se penalizado e manifestou sua preocupação com David e sua companheira. Solicitamos então que ele levasse para os dois maçãs que tinhamos na "suíte" para mininimizar-lhes a fome. Ele falou que era arriscado e não podia ser flagrado. Correria um risco enorme de ser punido severamente.

Pedimos que fechasse os olhos e nós assumiríamos o risco. Ele sairia do cenário e ficaria de longe pastorando a abertura da porta. Avisamos em voz baixa ao David. Descascamos 2 maçãs, embrulhamos em gardanapos e jogamos nos pés de David. Uma delas ele entregou para a companheira. A outra comeu com sofreguidão. Os guardanapos ele jogava no chão e o DEZ recolhia. Não podíamos deixar pistas. Mas, o DEZ só tirava plantão a cada 72 horas. Aproveitávamos para alimentar os dois no seu plantão. Depois o carcereiro Casadei (parece ser nome real) que era dividido mas, sempre cuidava bem da alimentação dos hóspedes, porque era viciado em buraco (baralho) e de madrugada entrava nas celas para jogar com os presos, resolveu colaborar também. A outra face é que ele ajudava na tortura. Diziam que era motorista da PM e sofria problemas do coração. Mas, tinha alguns gestos humanos. Dava banho de sol para todos. Os demais carcereiros (Gabriel, Pedro ou Toninho e o Shibuia - japonês) eram medrosos. Havia ainda o Lunga, carioca, agente federal que liberava o banho de sol e o Michura (japonês) de uma grande sensibilidade que às vezes perguntava se nós estávamos tristes e dizia: vamos cantar. E, conosco, cantava a Asa Branca, o hino Nacional da Nação Nordestina, segundo Ivanildo Villanova.

A cada dia o casal definhava por conta da dieta compulsória. Era uma tática que a repressão usava para quebrar a resistência. Percebemos um dia que a manga do braço esquerdo do paletó marron de David estava manchada de sangue. Ele a sua parceira de infortúnio jamais se queixaram. Em uma única manifestação deixou patente sua convicção de vitória e nos agradeceu o apoio.

Vimos na hora em que os dois sairam do DOI-CODI. É possível que tenhamos sido os últimos presos políticos a ver os dois com vida e, embora maltratados, ainda "inteiros", pelo menos aparentemente.

A repressão estava inconformada. Frustrada. Nada conseguira arrancar dos dois militantes. No máximo teriam assumido a condição de militantes e a sua convicção na justeza de sua causa.
Os esbirros da ditaduram estavam derrotados por dois presos indefesos cujas armas eram apenas a estatura moral, a dignidade e a coerência.
Do ponto de vista deles nada mais havia a fazer. Não sabemos exatamente o que foi feito da companheira de David. Nem mesmo se era sua companheira na acepção do termo.
O que aconteceu com David a partir da sua saída do DOI-CODI de São Paulo?
Não sabemos o seu exato percurso. Sabemos por leitura do livro Sem Vestígios, já mencionado no blog, que o seu destino final foi um sítio de Petrópolis onde foi barbaramente supliciado e trucidado da forma mais hediona inimaginável. O livro relata a crueza do extermínio de David Capistrano de fazer inveja a todos os carrascos da Alemanha nazista.
Ao ler o livro experimentamos alguns dias de muita revolta e até depressão. Vamos poupar seus parentes das minudências. Seria mais sofrimento ainda. Ademais o blog não é o local adequado para expor tanta crueldade. Fugiria ao seu caráter pedagógio.
Só aconselhamos a leitura do livro a quem tiver o coração muito forte. Ele se baseia no depoimento de um agente que presenciou o desfecho do calvário de David Capistrano.

Fizemos aqui a nossa parte. As informações que faltam serão objeto de trabalho de historiadores e até a comprovação daquilo que aqui foi relatado.

David Capistrano jamais praticou ou pregou a violência. Apenas sonhou com um Brasil e um mundo melhor, mais justo.

Na nossa convicção DAVID CAPISTRANO É UM MARTIR E UNS DOS MAIORES HEROIS DA LUTA CONTRA A CRUELDADE DA SANGUINÁRIA DITADURA QUE INFELICITOU O BRASIL AO LONGO DE 21 ANOS.

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