Enquanto muitos aqui no Ceará e também no Brasil se omitem, o debate já ultrapassa as fronteiras do país. Leia abaixo as ponderações de Rodrigo Gueron para o Le Monde Diplomatique que é um tablóide do jornal francês Le Monde, um dos mais respeitáveis e competentes órgãos da imprensa internacional
POLÊMICA
A fome de miséria do Bispo
Os que apóiam Dom Cappio não podem ser de esquerda. Tornaram-se cúmplices e motores de um dos mais profundos conservadorismos brasileiros. Um esquema que glorifica exatamente aquilo que precisa ser vencido: fome, sofrimento e morte
Rodrigo Guéron
Escrevi um primeiro artigo sobre a greve de fome de Dom Luiz Cappio contra a transposição do Rio São Francisco no jejum anterior do religioso. Naquela ocasião, ele recebeu o apoio de alguns dos maiores coronéis oligarcas nordestinos: ACM foi visitá-lo e o então governador de Sergipe, João Alves Filho, chefe do pefelê local, participou de uma missa em sua homenagem. Note-se que ambos foram derrotados, nas eleições que se seguiram, exatamente por dois candidatos a governador do PT, numa campanha eleitoral onde as obras do rio não deixaram de ser debatidas.
É evidente que as discussões técnicas em torno da transposição são importantes. O problema são as características do ato protagonizado pelo bispo, o que esta performance diz e simboliza. Muito mais que os apoios ecléticos recebidos por Dom Cappio, seu gesto traz à tona algo que expressa o que o Brasil, e o Nordeste em particular, têm de mais conservador e violento.
O ato do bispo é, em primeiro lugar, um culto à fome, ao sofrimento e em última análise à própria morte. O bispo se auto-exalta, e é exaltado, como alguém que seria mais virtuoso que os outros porque sofre e passa fome. Isso o faria uma espécie de portador da verdade. Ou seja, fome e sofrimento seriam uma espécie de passaporte para a bem. Dessa maneira, no entanto, o bispo restaura o próprio circuito de miséria, violência endêmica e poder, que se fecha numa lógica, num sentido, que há mais de um século aprisiona a vida, e conseqüentemente a política, no Nordeste.
A pulsão de morte... a mistificação religiosa contra a qual Glauber Rocha se levantou com veemência
O mal que o moralismo salvacionista católico fez, e faz, ao país, apesar de toda ambígua e impressionante potência de Canudos, parece não ter fim. O culto ao mártir morto e vitimizado, a lógica da sina do miserável predestinado; enfim, a mistificação religiosa contra a qual Glauber Rocha se levantou com veemência. Esse ímpeto, que balança entre o conformismo e a atitude suicida/auto-martirizante por uma grande causa – como supostamente é a do bispo – transforma-se numa espécie de pulsão de morte coletiva que transcende, no Brasil, os limites do Nordeste.
Estou longe de ser um entusiasta do desenvolvimentismo, do progresso a qualquer preço: aí também existe um culto positivista e uma crença na redenção, em torno da qual organizam-se esquemas de poder. Acredito, no entanto, que água, produção de alimento e mudanças nas relações de trabalho fariam bem ao sertão. É claro que deve haver pressão política, para que os pequenos proprietários desfrutem da obra. Eles podem vir a ser uma classe média rural, pequenos produtores, por vezes resultado das ocupações de latifúndios improdutivos feitas pelo MST, e que votaram massivamente em Lula nas últimas eleições. A Pastoral da Terra e a UDR que me desculpem, mas o MST é fundamental para o crescimento do nosso mercado agrícola; para que avance o processo de diversificação e barateamento dos alimentos que hoje vivemos no país.
E embora me considere à esquerda dos marxistas, com suas teleologias e transcendências, há até algo de marxista nessa minha afirmação, qual seja, entender que as transformações da produção são sempre, de certa forma, uma transformação – e uma produção – política. Mas o marxismo cristão brasileiro torna-se cada vez mais conservador: prefere a metafísica de Marx – a salvação em algum socialismo imaculado – ao seu materialismo. É triste que os teóricos da Teologia da Libertação, que produziram uma ruptura e um movimento liberador na imanência das lutas, na rebelião dos pobres e na potente palavra de ordem do MST (“Ocupar, resistir, produzir”, hoje um tanto esquecida...), tenham caído nessa captura conservadora que nega a vida pela transcendência.
A mesma lógica moralista de Frei Betto, quando diz que o problema é os pobres desejarem
É curioso, inclusive, que uma conhecida atriz global apóie com tanta veemência o tal bispo. Ela que, como milhões de pessoas, todos os dias toma banho em água limpa graças à transposição do rio Guandu, que abastece o Rio de Janeiro; e que é famosa graças, além de seu trabalho, à poderosa indústria do entretenimento e a seu custoso aparato tecnológico, quer agora negar a tecnologia aos pobres e falar dos perigos do mercado e do dinheiro se expandir pelo sertão. É a mesma lógica moralista que fez Frei Betto dizer, há não muito tempo, que a culpa da fome era da geladeira, porque fez os pobres desejarem ter sorvete e refrigerante, quando antes se satisfaziam com arroz, feijão e carne seca. Os pobres, os que estão fora do “mercado” desejando: este é na verdade o “perigo”....
Parece claro, portanto, que não foi contra os possíveis problemas da transposição do rio, nem contra as grandes misérias do capitalismo, que essa greve se voltou. É na verdade – como Gil e Caetano bem disseram na canção Haiti, numa menção à ira de nossas “classe médias” contra as escolas propostas por Darci Ribeiro — “um pânico mal-dissimulado diante de qualquer, mas qualquer mesmo, plano que pareça fácil é rápido, e vá representar uma ameaça de democratização...”
Suponhamos mesmo que, na pior hipótese, a transposição beneficie o agronegócio, as mega-empresas agrícolas exploradoras. Então, organiza-se um sindicato, reivindica-se melhores salários, participação nos lucros, faz-se uma boa greve... Em todo caso, melhor que o servilismo aos coronéis, que não querem a transposição; melhor que uma procissão de miseráveis que santificarão um bispo morto e pedirão que Deus “nos mande chuva” e se autogloficarão na miséria, na privação e na dor.
Acho inadmissível que setores que se dizem “de esquerda” apóiem isso: não são de esquerda, posto que estão sendo cúmplices e motores de um dos mais profundos conservadorismos brasileiros. Um esquema que e glorifica exatamente aquilo que precisa ser vencido: fome, sofrimento e morte.
A fome de miséria do Bispo
Os que apóiam Dom Cappio não podem ser de esquerda. Tornaram-se cúmplices e motores de um dos mais profundos conservadorismos brasileiros. Um esquema que glorifica exatamente aquilo que precisa ser vencido: fome, sofrimento e morte
Rodrigo Guéron
Escrevi um primeiro artigo sobre a greve de fome de Dom Luiz Cappio contra a transposição do Rio São Francisco no jejum anterior do religioso. Naquela ocasião, ele recebeu o apoio de alguns dos maiores coronéis oligarcas nordestinos: ACM foi visitá-lo e o então governador de Sergipe, João Alves Filho, chefe do pefelê local, participou de uma missa em sua homenagem. Note-se que ambos foram derrotados, nas eleições que se seguiram, exatamente por dois candidatos a governador do PT, numa campanha eleitoral onde as obras do rio não deixaram de ser debatidas.
É evidente que as discussões técnicas em torno da transposição são importantes. O problema são as características do ato protagonizado pelo bispo, o que esta performance diz e simboliza. Muito mais que os apoios ecléticos recebidos por Dom Cappio, seu gesto traz à tona algo que expressa o que o Brasil, e o Nordeste em particular, têm de mais conservador e violento.
O ato do bispo é, em primeiro lugar, um culto à fome, ao sofrimento e em última análise à própria morte. O bispo se auto-exalta, e é exaltado, como alguém que seria mais virtuoso que os outros porque sofre e passa fome. Isso o faria uma espécie de portador da verdade. Ou seja, fome e sofrimento seriam uma espécie de passaporte para a bem. Dessa maneira, no entanto, o bispo restaura o próprio circuito de miséria, violência endêmica e poder, que se fecha numa lógica, num sentido, que há mais de um século aprisiona a vida, e conseqüentemente a política, no Nordeste.
A pulsão de morte... a mistificação religiosa contra a qual Glauber Rocha se levantou com veemência
O mal que o moralismo salvacionista católico fez, e faz, ao país, apesar de toda ambígua e impressionante potência de Canudos, parece não ter fim. O culto ao mártir morto e vitimizado, a lógica da sina do miserável predestinado; enfim, a mistificação religiosa contra a qual Glauber Rocha se levantou com veemência. Esse ímpeto, que balança entre o conformismo e a atitude suicida/auto-martirizante por uma grande causa – como supostamente é a do bispo – transforma-se numa espécie de pulsão de morte coletiva que transcende, no Brasil, os limites do Nordeste.
Estou longe de ser um entusiasta do desenvolvimentismo, do progresso a qualquer preço: aí também existe um culto positivista e uma crença na redenção, em torno da qual organizam-se esquemas de poder. Acredito, no entanto, que água, produção de alimento e mudanças nas relações de trabalho fariam bem ao sertão. É claro que deve haver pressão política, para que os pequenos proprietários desfrutem da obra. Eles podem vir a ser uma classe média rural, pequenos produtores, por vezes resultado das ocupações de latifúndios improdutivos feitas pelo MST, e que votaram massivamente em Lula nas últimas eleições. A Pastoral da Terra e a UDR que me desculpem, mas o MST é fundamental para o crescimento do nosso mercado agrícola; para que avance o processo de diversificação e barateamento dos alimentos que hoje vivemos no país.
E embora me considere à esquerda dos marxistas, com suas teleologias e transcendências, há até algo de marxista nessa minha afirmação, qual seja, entender que as transformações da produção são sempre, de certa forma, uma transformação – e uma produção – política. Mas o marxismo cristão brasileiro torna-se cada vez mais conservador: prefere a metafísica de Marx – a salvação em algum socialismo imaculado – ao seu materialismo. É triste que os teóricos da Teologia da Libertação, que produziram uma ruptura e um movimento liberador na imanência das lutas, na rebelião dos pobres e na potente palavra de ordem do MST (“Ocupar, resistir, produzir”, hoje um tanto esquecida...), tenham caído nessa captura conservadora que nega a vida pela transcendência.
A mesma lógica moralista de Frei Betto, quando diz que o problema é os pobres desejarem
É curioso, inclusive, que uma conhecida atriz global apóie com tanta veemência o tal bispo. Ela que, como milhões de pessoas, todos os dias toma banho em água limpa graças à transposição do rio Guandu, que abastece o Rio de Janeiro; e que é famosa graças, além de seu trabalho, à poderosa indústria do entretenimento e a seu custoso aparato tecnológico, quer agora negar a tecnologia aos pobres e falar dos perigos do mercado e do dinheiro se expandir pelo sertão. É a mesma lógica moralista que fez Frei Betto dizer, há não muito tempo, que a culpa da fome era da geladeira, porque fez os pobres desejarem ter sorvete e refrigerante, quando antes se satisfaziam com arroz, feijão e carne seca. Os pobres, os que estão fora do “mercado” desejando: este é na verdade o “perigo”....
Parece claro, portanto, que não foi contra os possíveis problemas da transposição do rio, nem contra as grandes misérias do capitalismo, que essa greve se voltou. É na verdade – como Gil e Caetano bem disseram na canção Haiti, numa menção à ira de nossas “classe médias” contra as escolas propostas por Darci Ribeiro — “um pânico mal-dissimulado diante de qualquer, mas qualquer mesmo, plano que pareça fácil é rápido, e vá representar uma ameaça de democratização...”
Suponhamos mesmo que, na pior hipótese, a transposição beneficie o agronegócio, as mega-empresas agrícolas exploradoras. Então, organiza-se um sindicato, reivindica-se melhores salários, participação nos lucros, faz-se uma boa greve... Em todo caso, melhor que o servilismo aos coronéis, que não querem a transposição; melhor que uma procissão de miseráveis que santificarão um bispo morto e pedirão que Deus “nos mande chuva” e se autogloficarão na miséria, na privação e na dor.
Acho inadmissível que setores que se dizem “de esquerda” apóiem isso: não são de esquerda, posto que estão sendo cúmplices e motores de um dos mais profundos conservadorismos brasileiros. Um esquema que e glorifica exatamente aquilo que precisa ser vencido: fome, sofrimento e morte.
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